Paula Ferla Lopes

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MULTIPARENTALIDADE: A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA COMO FORMA DE CONSAGRAÇÃO DA POSSE DO ESTADO DE FILHO

Por: Paula Ferla Lopes

A partir da Constituição Federal de 1988, antigas concepções, tais como a primazia da verdade biológica para fins de constatação de estado de filiação, foram sendo relativizadas, ganhando espaço a afetividade nas relações familiares. No sistema brasileiro, o que se nota atualmente é que o vínculo familiar se dá pela afetividade e que a figura de pai e mãe vem sendo determinada não só pela genética ou por presunção legal, mas também pela convivência afetiva. Ocorre que, em diversos casos, não se pode escolher entre apenas uma das modalidades de paternidade, considerando que, naquela realidade social, o indivíduo possui mais de um vínculo parental, casos nos quais se está diante do que a doutrina chama de multiparentalidade.

Ainda que não haja previsão expressa acerca da multiparentalidade no texto legal, é notável que os tribunais já têm se deparado com esta questão e em alguns casos isolados já reconheceram sua possibilidade. Por outro lado, a postura jurisprudencial majoritária segue negando provimento a estes casos, sob o argumento de que uma das paternidades deve prevalecer no caso concreto, limitando o vínculo de filiação do filho.

A discussão acerca da prevalência da paternidade socioafetiva sobre a biológica já foi objeto de reconhecimento de repercussão geral pelo STF, conforme o ARE nº 692186. Nesse contexto, imperioso ressaltar que, no julgamento do Recurso Extraordinário de nº 898.060/SP, o Ministro Luiz Fux, em voto histórico reconheceu a multiplicidade de vínculos parentais e, consequentemente, seu reconhecimento concomitante, além de propor a fixação desta tese para aplicação a casos semelhantes.

Que existe um grande conflito entre a paternidade biológica, oriunda da identidade genética entre genitor e filho, e a socioafetiva, decorrente de afinidade e carinho entre pai e filho é evidente. Todavia, o direito não pode fechar os olhos para os casos em que as duas perfeitamente convivem simultaneamente e acabam por beneficiar o filho.

Na atual conjuntura da sociedade, não se pode mais limitar os vínculos familiares, considerando, ademais, os diversos arranjos familiares existentes e a pluralidade das entidades familiares. Vivemos em um contexto de famílias recompostas, decorrentes de divórcios e dissoluções de uniões estáveis e pessoas que, após términos afetivos, ingressam em uma nova relação consequentemente levando consigo os filhos que se afeiçoam aos novos parceiros. Em alguns casos, os laços afetivos criados com os padrastos e madrastas são tão fortes que a lei criou a possibilidade do enteado ou enteada requerer em Juízo a adoção do sobrenome de seu padrasto ou madrasta, segundo nova redação dada pela Lei 11.924/2009, que editou o art. 57, § 8º da Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.017/73). Tal fato, por óbvio, remonta à figura do afeto como princípio jurídico e à crescente discussão acerca da possibilidade do reconhecimento da multiparentalidade.

Feitas estas considerações, que a multiparentalidade existe já é fato incontroverso. O que se precisa, pois, é a adequação do direito a esta nova realidade cada vez mais presente no mundo contemporâneo.

Dessa forma, o presente artigo buscará, em síntese, analisar o direito de filiação pós advento da Constituição Federal de 1988, mormente no que respeita à igualdade entre as paternidades biológica e socioafetiva, realizando um comparativo acerca da noção da posse do estado de filho do direito pátrio e do direito comparado. Por fim, buscará analisar a experiência brasileira a respeito do assunto em pauta mormente quanto à possibilidade de seu reconhecimento nos casos em que esta for a realidade vivida pelo núcleo familiar em questão.

A direito de filiação pós advento da Constituição Federal de 1988 e a consagração da posse do estado de filho

A Constituição Federal de 1988 revolucionou o conceito de família até então existente direito brasileiro, tendo em vista que em seu texto legal não só reconheceu a pluralidade entidades familiares, mas também a igualdade de gêneros e, sobretudo, de filiação. O que antes era uma legislação extremamente arcaica e possuidora de diversos tipos de preconceitos, que protegia única e exclusivamente a família oriunda da união matrimonial e renegava qualquer outra forma de formação familiar, deixou de o ser para priorizar e valorizar o indivíduo, enquanto pessoa humana e detentor de dignidade. Ademais, a partir desta inovação constitucional, deixou o elo familiar de ser reconhecido através de uma situação jurídica, qual seja, o casamento, para tornar-se algo muito mais puro e concreto: o afeto.

Isso porque, anteriormente à Constituição Federal de 1988, somente os filhos considerados legítimos, os nascidos na constância do casamento, poderiam ser reconhecidos. Nos anos de 1942 e 1949, o Dec.-lei 4.737 e a Lei 883, autorizaram o reconhecimento do filho havido fora do casamento. Todavia, somente após a dissolução do casamento do pai e, ainda assim, os filhos concebidos nessa situação eram registrados como ilegítimos, ressaltando-se o caráter extremamente discriminador da legislação vigente à época.

A Carta Magna de 1988, portanto, em seu art. 226, § 6º, mudou esse entendimento estendendo o reconhecimento a todos os filhos, acabando com a classificação extremamente preconceituosa de filhos legítimos ou ilegítimos e, consequentemente, proibindo qualquer tratamento discriminatório quanto à filiação, dispositivo este que, inclusive, foi recepcionado e transcrito no atual diploma civil em seu artigo 1.596, o qual prevê que os filhos, havidos ou não da relação de casamento ou adoção, “terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.

Além de tudo isto, em tempos atuais, incabível se falar em uma possível superioridade da paternidade biológica, em detrimento das demais formas, sobretudo, a socioafetiva, cujo elo concretizador é a afetividade e que, por este motivo, cada dia mais, ganha força na realidade brasileira.

No contexto societário atual, o que se nota é que outros valores passaram a ter maior relevância do que a verdade biológica para a constatação do estado de filiação. A filiação socioafetiva ganhou grande importância, podendo se afirmar que, em alguns casos concretos, esta se sobrepõe às demais formas de filiação. Diante disto, cada vez mais as famílias vêm sendo caracterizadas pela afetividade demonstrada em suas relações pessoais. Nesse sentido, a afinidade e o carinho entre eles demonstrado prevalece em detrimento de fatores genéticos ou jurídicos para definir o real conceito de família, independentemente da forma pela qual se originou, bem como em relação ao número de integrantes de relação parental. 

Com todas estas inovações, a relação de paternidade pode ser classificada em três tipos paternidade: registral, biológica e socioafetiva. A filiação registral se constitui com o registro de nascimento, conforme o art. 1.604 do Código Civil Brasileiro, o qual determina que “ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade de registro”, aliados às demais formas previstas no art. 1.609 do Código Civil, quais sejam, através escritura pública, escrito particular, testamento e declaração, conforme preceitua o art. 1.609 do Código Civil. Nesse sentido, aquele que se declara pai de recém-nascido é assim considerado para todos os efeitos legais, sendo tal registro irrevogável.

A paternidade biológica, por sua vez, diz respeito à identidade genética havida entre genitores e filhos, considerada a ‘verdade real’, que se tornou possível, principalmente, com o avanço tecnológico e a criação do exame de DNA. Vale dizer, ainda, que este tipo foi o que teve seu papel mais relativizado pós promulgação da Constituição Federal de 1988, uma vez que seu conceito e amplitude são repletos de fatores históricos, ideológicos e religiosos condizentes com uma sociedade patriarcal, que, muitas vezes, não mais se adequa aos modelos familiares vistos nos casos concretos atuais, mormente em virtude do reconhecimento constitucional da pluralidade das entidades familiares. Imperioso relembrar que, contemporaneamente, e com a priorização do indivíduo dentro do contexto familiar, outros fatores, que não a origem genética, são determinantes para a existência ou não do vínculo paterno filial.

 Por fim, o terceiro tipo de paternidade, qual seja, a socioafetiva é fundamentalmente baseada no afeto e no desejo de desempenhar a função precípua da figura de pai através de uma relação de zelo, amor filial e natural dedicação ao filho. Trata-se de modalidade de paternidade concretizada através da convivência familiar, independentemente da existência de afinidade genética. Da mesma forma, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Roselvald afirmam que: “socioafetiva é aquela filiação que se constrói a partir de um respeito recíproco, de um tratamento em mão dupla, como pai e filho, e inabalável na certeza que aquelas pessoas, de fato são pai e filho”.

Nem toda relação calcada no afeto, todavia, é capaz de autorizar os efeitos jurídicos inerentes a uma relação paterno-filial, mas tão somente no caso em que reste comprovada a existência da posse do estado de filho nas mais diversas situações que a vida impõe.

Dessa forma, vale dizer que nem sempre a relação de paternidade obrigatoriamente obedece ao critério genético, tendo em vista que, em alguns casos, necessário desvincular o papel do genitor da de pai, importando muito mais, no dia a dia, as funções inerentes a esta figura do que uma ascendência genética para fins de configuração de uma relação paterna filial.

Trata-se, pois, na visão de Belmiro Welter, a partir da análise da teoria lacaniana denominada do “nome-do-pai”, do entendimento de que “pai” primeiramente é um nome e, somente posteriormente, uma pessoa, tratando-se de um indivíduo que, espontaneamente, ajudará o filho em seu descobrimento enquanto sujeito, podendo este papel ser ou não desempenhado pelo genitor. A partir desta ideia, tem-se que a afetividade ganha muita importância nas questões de parentesco, levando constatação da chamada “verdade sociológica”, na qual se configura a filiação através da denominada posse do estado de filho.

No direito brasileiro, a posse do estado de filho constitui modalidade de parentesco civil, nos termos do Enunciado 256 da Jornada de Direito. Dentro deste contexto, vale dizer, outrossim, que ela pode ser constatada através da chamada “teoria da aparência”. Nesse contexto, ao discorrer acerca da paternidade socioafetiva e da posse do estado de filho, Conrado Paulino da Rosa defende que:

Trata-se de uma aplicação da teoria da aparência – utilizada também em outras áreas do Direito – em que as pessoas que visualizam aquele agrupamento familiar onde residem pessoas que se comportam enquanto pais e, por outro lado, uma ou mais pessoas se portando como filhos, não há como saber a origem da filiação, se ela é biológica ou socioafetiva.

Diante disto, para a configuração da posse do estado de filho necessário se faz a análise de três requisitos tratamento nome (nominatio) tratamento (tractatus) e fama (reputatio). O primeiro aspecto analisa se o filho leva o nome da família. O segundo, por sua vez, respeita à forma como o filho é tratado pela família e se de tal forma o é considerado por ela. Por derradeiro, o último refere-se à opinião pública e ao reconhecimento de que aquele filho, de fato, integra a família de seus pais, garantindo-lhe a indispensável sobrevivência, tratando-se de verdadeira notoriedade. Vale dizer, todavia, que alguns autores como Belmiro Welter e José Bernardo Ramos Boeira defendem a dispensabilidade do requisito do nome, bastando para a configuração da posse do estado de filho somente os requisitos do tratamento e da fama.

Outrossim, amplamente consagrada é a posse do estado de filho no direito comparado. Nesse sentido, Rolf Madaleno afirma que:

A noção da posse do estado de filho vem recebendo abrigo nas reformas do direito comparado, o qual não estabelece os vínculos parentais com o nascimento, mas sim na vontade do genitor, e esse desejo é sedimentado no terreno da afetividade, e põe em xeque tanto a verdade jurídica como a certeza científica no estabelecimento da filiação.

A título meramente exemplificativo, poderia se citar a previsão da posse do estado de filho no art. 113, I, do Código Civil espanhol ou até mesmo o art. 1.871, 1, do Código Civil Português que prevê a presunção de paternidade nos casos quando restar configurada a posse do estado de filho através dos requisitos do tratamento e a fama. Por outro lado, a legislação francesa foi mais extensa ao estabelecer alguns critérios para a configuração da posse de estado, tendo em vista que no artigo 311-1 do Código Civil Francês restam expressos os seguintes pressupostos para a fixação da posse do estado de filho: (1) que o filho tenha sido tratado como tal pelos supostos pais; (2) que cuidaram de sua formação, manutenção ou instalação; (3) que a pessoa é reconhecida como filho daquele pai perante a sociedade, bem como perante a autoridade pública; bem como que (4) leva o nome dos supostos pais.

No direito pátrio, em contrapartida, uma vez preenchidos os requisitos anteriormente citados, quais sejam, nome (em alguns casos), tratamento e fama,  considera-se consolidada a posse do estado de filho e, consequentemente, a existência da paternidade socioafetiva, apta a gerar os mesmos efeitos jurídicos decorrentes dos outros tipos de paternidade, nos termos do Enunciado Programático nº 06/2013, do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, estabelece que “do reconhecimento jurídico da filiação socioafetiva decorrem todos os direitos e deveres inerentes da autoridade parental”, tais como nome da família, poder parental, alimentos, convivência familiar e direito sucessório.

Outro não poderia ser o entendimento considerando a relevância da afetividade dentro das relações familiares, bem como que, para o direito contemporâneo, a real paternidade deixou de ser meramente biológica, passando a ser cultural, na qual muito mais importa a convivência familiar calcada no afeto que acarreta em uma relação paterno-filial baseada nos laços de afeto de seus integrantes, independentemente da coexistência de vínculo biológico.

Nos tempos atuais, não se pode mais falar na existência de uma inferioridade hierárquica da paternidade socioafetiva em relação às demais formas de paternidade, ou, em contrapartida, da prevalência de qualquer dos tipos de paternidade em caráter absoluto. Dessa forma, necessário a análise do caso concreto, a fim de se constatar qual tipo de paternidade se adequa melhor à realidade daquela família e, em se tratando de filho menor, qual delas atende ao princípio do melhor interesse da criança e do adolescente.

Ocorre que, em alguns casos, mormente quando os tipos de paternidade se confundem, o atendimento ao melhor interesse de criança e do adolescente, não se limita à escolha de um destes tipos, tratando-se do ponto no qual a problemática inicia.

Ainda que se trate de questão inovadora e demasiadamente controversa, o direito ignorar a dinâmica da sociedade contemporânea e todas as remodelagens do conceito de família. A pluralidade das entidades familiares reconhecida pela Constituição Federal de 1988 trouxe consequências no âmbito do direito de família e filiação, dentre as quais grande destaque tem a questão da multiparentalidade, tema longe de pacificação e cada vez mais presente na realidade atual. 

Multiparentalidade: a experiência brasileira

A multiparentalidade ou pluriparentalidade é um fenômeno que cada vez mais ganha força no ordenamento jurídico brasileiro. Isso porque, ainda que, via de regra, um dos tipos de paternidade prevaleça sobre os demais em cada caso concreto, existem situações nas quais é possível defender simultaneidade na determinação de filiação de uma pessoa, produzindo-se efeitos jurídicos em relação a todos eles a um só tempo.

Antes de mais nada, imperioso ressaltar que a multiparentalidade diverge da determinada bipaternidade, tendo em vista que a primeira exige no mínimo a existência de três ou mais pessoas como pais, ao passo em que na última existem apenas dois pais, que podem ou não ser do mesmo sexo, tratando-se, nestes últimos casos de bipaternidade maternidade ou paterna.

Feitas estas considerações e, considerando o dever de proteção da família pelo Estado previsto no art. 226, caput, da Constituição Federal, bem como a igualdade de filiação prevista no art. 227, § 6º do mesmo diploma legal, inexistem razões para que, nos casos em que restar configurada a concomitância de vínculos parentais, não haja o respectivo reconhecimento pelo ordenamento jurídico. Qualquer disposição em contrário, inclusive, feriria os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da afetividade. Em contrapartida, o seu reconhecimento demonstra, ainda, mais um avanço em termos do reconhecimento do afeto enquanto valor jurídico.

Além dos pontos assinalados, nos termos do artigo 227, caput, da Constituição é previsto o dever da família de assegurar à criança afruição da vida com dignidade,. Para tanto, todavia, é necessário que a sociedade como um todo e o próprio Estado garantam os meios ou, ao menos, se abstenham de praticar interferências que prejudiquem a possibilidade deste exercício, notadamente quando se tratar dos casos nos quais restar configurada a existência de multiparentalidade e, mais ainda, quando tal arranjo estiver beneficiando a própria criança ou adolescente.

Nesse passo, a dignidade da pessoa humana, princípio constitucional fundamental de maior hierarquia axiológica-valorativa previsto no art. 1º, III, da Constituição Federal, visa, dentre outras coisas, garantir o pleno desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo, impondo-se ao Estado não só um dever de abstenção de ingerências na esfera individual contrárias à dignidade, mas também um dever de protegê-la contra agressões de terceiros.  Outrossim, a dignidade da pessoa humana possui condição dúplice, possuindo uma dimensão defensiva e prestacional, sendo, ainda, concomitantemente limite e tarefa dos poderes estatais.

Aliado ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, no que tange ao caso, ainda, imperioso citar o princípio da paternidade responsável, previsto no art. 226, § 7º da Constituição Federal que, justamente nesta perspectiva da concretização da dignidade da pessoa humana, advoga em favor do reconhecimento simultâneo de mais de um tipo de paternidade, qual seja biológica e afetiva, não havendo motivo plausível para se escolher entre uma quando o melhor interesse da criança e do adolescente pender para o reconhecimento de ambos. Trata-se, ainda, da concretização do direito fundamental de proteção da família previsto no caput do referido artigo e que não pode deixar de ser observado pelo aplicador do direito.

Qualquer disposição em contrário feriria, portanto,o princípio da dignidade da pessoa humana, que visa, dentre outras coisas, garantir a plena formação do indivíduo. Visto isto, qualquer decisão que limitasse um vínculo de paternidade que na realidade vivida já é consagrado, afetaria e prejudicaria o indivíduo que teria que ser privado de um dos pais e não receberia a tutela jurídica que lhe é devida.

Ao discorrer sobre o tema, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald sabiamente remontam à Teoria Trimendisional do Direito de Família construída por Belmiro Welter, que considera a existência de uma trilogia familiar, em virtude se o ser humano ser, ao mesmo tempo, biológico, afetivo e ontológico. Nesse passo, segundo esta teoria, o ser humano é biológico, tendo em vista que se origina a partir da reprodução, perpetuando-se por gerações, herdando traços genéticos e morais de seus genitores. Outrossim, é considerado afetivo, em virtude de viver dentro de um contexto familiar, sendo, por conseguinte, influenciado por fatores pessoais, familiares e sociais. Nesse sentido, importância crucial possui a afetividade, sendo esta necessária, inclusive, para sua manifestação no mundo cotidiano. Por derradeiro, é ontológico, uma vez que não existe uma teoria exclusiva (afetiva ou biológica) para defini-lo, visto que o indivíduo se relaciona com o mundo como um todo, convivendo, simultaneamente, com sua ascendência genética, sua verdade afetiva, decorrente das relações familiares e sociais, e consigo mesmo. Trata-se do mesmo ser que se relaciona, concomitantemente, com estes três fatores.

Nesse passo, ainda, de acordo com os defensores desta tese e com a teoria apresentada por Belmiro Welter, as filiações baseadas nos critérios biológico e socioafetivo são completamente diferentes, motivo pelo qual poderiam existir simultaneamente, não sendo cabível que uma elimine a outra. Nesta mesma linha de raciocínio, inclusive já houve o julgamento da Apelação Cível de nº 70029363918, na qual o desembargador relator, Claudir Fidelis Faccenda aplicou a teoria tridimensional e entendeu que nenhum tipo de paternidade poderia se sobrepor à outra, autorizando, no caso, a existência de multiparentalidade.

No ordenamento jurídico brasileiro, em julgamento histórico e inovador do Recurso Extraordinário 898.060/SP, cujo enfoque era o reconhecimento de uma possível prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica, o Ministro Luiz Fux, em seu voto, reconheceu a possibilidade da simultaneidade das paternidades biológica e socioafetiva com respaldo na vedação à discriminação e hierarquização entre espécies de filiação, bem como nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável. Em seu voto, afirma que é “o direito que deve se curvar às vontade e necessidades das pessoas, não o contrário” e, mais ainda, que “nos tempos atuais, descabe pretender decidir entre a filiação afetiva e a biológica quando o melhor interesse do descendente é o reconhecimento jurídico de ambos”. Por fim, sugeriu a tese para aplicação em casos semelhantes de que a paternidade socioafetiva, independente de declaração em registro público “não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseado na origem biológica, com todas as consequências patrimoniais e extrapatrimoniais”.

No direito comparado, por sua vez, conforme bem apontado pelo Ministro Luiz Fux em seu voto, o Código Civil do estado da Louisiana inovou e passou a reconhecer a dupla paternidade nos seus artigos 197 e 198, tornando-se o primeiro estado norte-americano a permitir legalmente que um filho possua dois pais, com todas as obrigações inerentes a esta função. Neste sentido, vale dizer que os artigos referidos, na verdade, são uma interpretação codificada da jurisprudência. Trata-se, em síntese, do que eles chamam de dual paternitye se aplica a casos como os de crianças nascidas na constância do casamento da mãe, sem que o marido seja seu pai, ainda que exista a presunção de paternidade. Nesses casos, além do marido da mãe, que seria o pai socioafetivo, nada obsta que a criança busque, de igual forma, o reconhecimento de filiação de seu pai biológico.

Neste contexto, e conforme já vem sendo reconhecido no direito comparado, não se pode mais limitar a paternidade a apenas duas pessoas, quando a realidade fática daquela criança ou adolescente não corresponde a isto. Ocorre que o reconhecimento ou não da multiparentaidade não põe fim à controvérsia, uma vez, a partir deste, outra indagação surge, qual seja, quais os efeitos jurídicos decorrentes deste reconhecimento? Acerca disso, plenamente cabível tecer, ainda que breve, algumas considerações.

Para Maria Berenice Dias, uma vez identificada a multiplicidade de vínculos de filiação, deve ser reconhecido não só o parentesco, mas também todos os encargos decorrentes tanto no âmbito do direito de família como no sucessório de todos os pais.

Cristiano Chaves de Farias, por outro lado, entende que o instituto da multiparentalidade deve ser observado com cautela pelo ordenamento, uma vez que a pluriparentalidade naturalmente acarretaria em uma pluri-hereditariedade, podendo gerar uma busca de reconhecido de filiação com fins exclusivamente patrimoniais, podendo a pessoa herdar várias vezes.

Cristiano Cassettari, por sua vez, defende que nos casos em que isto decorra de uma situação normal da vida, na qual coexistiram dois tipos de paternidade, qual seja biológica e afetiva, mormente nos casos em que houve convivência com ambos, plenamente cabível a possibilidade de o sujeito herdar mais de uma vez.

Nota-se, deste modo, que, uma vez reconhecida a existência da multiparentalidade, cabível, sim, o exercício do direito fundamental à herança, nos termos do art. 5º, inc. XXX da Constituição Federal, notadamente em virtude da vedação de discriminação entre os tipos de filição. Outrossim, de acordo com o Enunciado nº 09 do Instituto Brasileiro do Direito de Família – IBDFAM, “a multiparentalidade gera efeitos jurídicos”. Se os gera, estes também se dão no direito sucessório e, da mesma forma, que o vínculo de paternidade pode ser múltiplo, o direito sucessório, neste aspecto, também deve o ser, tanto no que respeita ao direito de herança do filho em relação aos pais, como o inverso.

Conforme amplamente demonstrado, a controvérsia atinente à multiparentalidade está longe de acabar. Não só seu próprio reconhecimento já gera inúmeros entraves, mas, mais ainda, todos os efeitos jurídicos decorrentes desta, tais como direitos a alimentos e, mais ainda, o direito sucessório. O que ocorre é que cada vez mais os vínculos de paternidade simultâneos existem e se exteriorizam, estando presentes na realidade de várias pessoas. Não pode, pois, o direito ignorar este fato, haja vista as diversas garantias fundamentais atinentes ao tema, mormente a concretização do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, que reside primordialmente na autonomia e no direito de autodeterminação da pessoa.Se esta realidade existe, não cabe ao Estado e à sociedade buscarem desconstituí-la, mas sim criar meios de que ela possa, cada vez mais, não só ser aceita, mas acima de tudo, ser regulamentada e protegida, como qualquer outro tipo de parentalidade.

Por mais que no ordenamento jurídico brasileiro já se reconheça a existência da multiparentalidade, sua aplicabilidade prática é extremamente restrita. Todavia, o que ocorre, é que a realidade daquele grupo familiar clama por um reconhecimento e, consequentemente, por uma proteção jurídica.

Não se busca, de forma alguma, com o presente artigo, uma banalização acerca do reconhecimento da multiparentalidade, mas sim que tal ocorra nos casos em que, de fato, se mostre a realidade da vida das pessoas envolvidas na relação pluriparental, buscando, em sua, a consagração do princípio da afetividade e da dignidade da pessoa humana no que respeita aos indivíduos envolvidos nesta relação. O direito e seus operadores não possuem a opção, mas sim o dever de aplicar e reconhecer o arranjo familiar existente naquele grupo familiar, seja ele parental ou multiparental, de acordo com o que a realidade daquela família demonstra.

Uma vez configurado, pois, mais de um dos tipos de paternidade, advindos de pessoas diversas, necessário se faz o reconhecimento jurídico que espelha tal situação e, junto dele, a garantia de todos os efeitos jurídicos decorrentes da relação da parentalidade.

A consagração da paternidade socioafetiva decorrente da posse do estado de filho já restou aclamada no direito pátrio e no direito comparado. Feito isso, não parece razoável que se limite a paternidade a apenas duas pessoas, mormente nos casos em que incontroversa a existência de mais alguém que exerce esta função. Este terceiro, pois, merece ser reconhecimento como pai, com todos os direitos e deveres inerentes a este papel.

Ainda que o direito seja cauteloso e resistente a reconhecer o assunto, trata-se da realidade de diversas famílias e, por este motivo, deve ser protegida e regulamentada, mormente no que respeita aos seus efeitos jurídicos, ainda mais quando se trata do direito sucessório, ponto no qual a controvérsia atinge grandes escalas e cuja discussão está longe de seu término.

Na atual conjuntura social e, em virtude de todas as remodelagens que o conceito de família teve até chegarmos aos dias atuais, totalmente plausível o reconhecimento acerca da existência da multiparentalidade em alguns casos concretos e a aplicação dos efeitos jurídicos decorrentes dessa,ainda que tal assunto gere considerável polêmica.

Diante de todo o exposto, não reconhecer a sua possibilidade nos casos em que a realidade mostra algo diverso é limitar o direito e ferir os direitos fundamentais do indivíduo. Além disso, nunca se pode esquecer que o direito de família é o direito do caso concreto, logo este deve se adequar à realidade das partes e não o contrário. Visto isso, se existe um arranjo multiparental na realidade daquele grupo familiar, extremamente necessário o seu reconhecimento como tal, não podendo o direito limitar o afeto existente entre aqueles que desejam ver sua relação paterno-filial juridicamente tutelada, considerando que, na realidade vivida por eles, ela já é consolidada.

Paula Ferla Lopes

OAB / RS 96.967 -