Eduarda Schilling Lanfredi

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O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA PRIVADA E DA MÍNIMA INTERVENÇÃO ESTATAL À LUZ DO DIREITO DE FAMÍLIA CONTEMPORÂNEO

Por: Eduarda Schilling Lanfredi

* Com a autoria conjunta do advogado Rodrigo Rosa de Lima (OAB 72.990). 

1 INTRODUÇÃO

           A insistente e abusiva interferência Estatal na esfera privada das relações conjugais e afetivas, atuando de forma a coibir determinados anseios e vontades dos indivíduos, inspirou a pesquisa e redação do presente trabalho.

           A realidade entre o mando Estatal e a vontade individual dos sujeitos de direito (cidadãos), para a obtenção de que a escolha destes seja respeitada, ganha a cada dia mais espaço, graças ao entendimento aplicado nas decisões judiciais, que se baseiam, em especial no princípio da afetividade, e gera efeitos significativos no campo da autonomia privada.

           Além disso, a constante “despatrimonialização” do direito de família e busca por justiça, baseada na dignidade, afetividade e confiança construída pelos indivíduos entre si, tem mostrado cada vez mais que a intromissão Estatal, apenas acresce o inconformismo com normas ultrapassadas, demonstrando que a sociedade prima pela busca da felicidade. É nesse contexto que se verifica que em determinadas situações deveria o Estado abster-se de regulamentar, como ocorre no caso de pessoas maiores de 70 (setenta) anos, serem obrigadas a casar-se sob o regime da separação total de bens, sob o argumento de serem vulneráveis.                                               

Assim, demonstraremos que a interferência exercida pelo Estado demonstra uma clara preocupação para manter determinadas normas antiquadas, vigentes antes da Constituição de 1988, tendo a sociedade lutado para que tal situação não perdure. Hodiernamente os indivíduos, pautados pelo amor recíproco e pela felicidade, querem exatamente que o Estado interfira minimamente em suas vidas.

           No entanto, o presente trabalho, não tem a intenção de esgotar o tema, ao contrário, apenas analisar algumas situações onde ocorre a interferência Estatal e as soluções encontradas pelos indivíduos, com o auxílio do poder judiciário, para que cada vez mais prevaleça a paz, a dignidade e a vontade expressa das partes nas relações familiares.

 

2 O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA PRIVADA E DA MÍNIMA INTERVENÇÃO ESTATAL À LUZ DO DIREITO DE FAMÍLIA CONTEMPORÂNEO

           Thomas Hobbes ao escrever seu célebre livro “Leviatã”, partiu do princípio de que jamais o mundo seria capaz de satisfazer as necessidades do homem, tendo em vista que estes são egoístas, competem entre si, o que ele chamou de “guerra de todos contra todos”, isto porque cada homem somente

procura aquilo que lhe é de interesse particular, sem olhar para o todo.              

           Portanto, seguindo a lógica de Hobbes, se faz necessário que o Estado regule determinadas condutas, punindo, controlando ou até mesmo vigiando, para que o homem não faça mal ou tome determinadas condutas morais.       

           Tendo esta ideia em mente, observa-se que o Estado, através dos tempos, tem sido constantemente motivado a atuar de forma super reguladora sobre a vida do indivíduo, agindo, por muitas vezes (na maioria delas, na verdade), de modo que ultrapassa os limites da intervenção estatal e passa a interferir, diretamente, nas relações privadas, especificamente naquelas atinentes ao Direito de Família.                                                                        

           Obviamente, o Estado possui milhares de Leis reguladoras da conduta humana, em especial na seara, supramencionada, ocorre que, conforme passaremos a demonstrar, é imprescindível que exista uma linha clara e definida entre a atividade estatal e a autonomia de vontade das partes.     

           O Estado, como ente hierárquico, é responsável por estabelecer mandamentos e internalizar e controlar a forma de atuação do indivíduo na coletividade, organizando e estruturando a maneira com que as relações interpessoais se desenvolverão. Trata-se, portanto, do agente regulador da conduta humana.                                                                                      

           Acontece que, embora dê as diretrizes necessárias para o pleno desenvolvimento social e dite as consequências ocasionadas em razão da infração de algum dos limites comuns, não pode sobrepor-se, a todo e qualquer momento, sob a vontade individual do ser humano. No caso, ainda que o Estado represente e signifique soberania, é imprescindível que este atue de modo a permitir a construção e o aprimoramento dos anseios pessoais.         

           Isto é, o Estado deve agir para resguardar a ordem e o bem estar social, no entanto, de forma alguma, deve reprimir ou valer-se das vontades dos sujeitos na sua atuação, visto que o seu papel consiste justamente no contrário, em uma condução que permita o desenvolvimento do indivíduo e possibilite que o mesmo seja visto e haja como um ser capaz de dirimir, por si só, a respeito de questões inerentes a seara pessoal.          

           Até porque, com as contínuas modificações sociais que foram ocorrendo, o papel do Estado passou a ser ressignificado, eis que, com o crescente desejo do indivíduo em estabelecer vínculos afetivos e de se sentir parte de algo mais profundo e subjetivo, a própria estrutura e forma familiar fora alterada. O modelo, até então, dominado pelo interesse, passou a reconhecer o amor como base estrutural e significar os membros do núcleo familiar com igual importância e valor.

           Passamos a nos deparar, então, com a família eudemonista. Este modelo prega pela busca da realização plena e do bem estar do seio familiar como um todo; retirou o caráter obrigacional da instituição e passou a enxerga-la como um refúgio, um ambiente de afeto, segurança e proteção.

           Logo, como os vínculos começaram a ser firmados sem qualquer tipo de imposição hierárquica, religiosa ou patrimonial, tornando-se a família a expressão e representação do livre arbítrio do indivíduo, o Estado não pode mais intervir nas relações ali firmadas como fazia anteriormente. Isto porque, de acordo com Dimas Messias de Carvalho[1]:

O afeto como valor jurídico importa nova concepção do Direito de Família na sua relação entre o público e o privado. A intervenção do Estado na família deve ser frequente, mas apenas protetiva, especialmente para os incapazes e pessoas fragilizadas, evitando abusos e proporcionando seu desenvolvimento, sem ingerência na sua constituição e manutenção. O Direito de Família, por consequência, é ramo de direito privado, regulado por normas cogentes ou de ordem pública, com forte intervenção protetiva do Estado, mas respeitando a vontade de seus membros; suas instituições jurídicas são de direito-deveres; é direito personalíssimo, irrenunciável e intransmissível.

           Assim, o Estado, diante de tais modificações e da aceitação da afetividade como um princípio fundamental, passou a atuar de acordo com o Direito de Família Mínimo.         O Direito de Família Mínimo, conhecido também como a mínima intervenção do Estado nas relações familiares, prega e reconhece a capacidade do sujeito de administrar as relações firmadas e da consequente desnecessidade da ingerência estatal, salvo quando estivermos diante de situações revestidas de vulnerabilidade, como a iminência de risco a crianças, adolescentes ou pessoas idosas.

Conforme Leandro Barreto Moreira Alves[2]:

O Estado apenas estaria autorizado a intervir no âmbito da família quando visasse implementar direitos fundamentais da pessoa humana, como a dignidade, a igualdade, a liberdade, a solidariedade etc.

              Isto é, o Estado deveria capacitar o indivíduo e criar meios para que este conseguisse se auto gerenciar, ficando a sua atuação limitada e restrita a hipóteses de afronta a garantias constitucionais mínimas. Até porque, conforme mencionado, o Judiciário, diante das constantes transformações que foram sucedendo ao longo do tempo, inclusive na maneira como as entidades familiares foram se constituindo e na transformação do ambiente pessoal em um meio de realização pessoal e de busca pela felicidade, deveria admitir as decisões ali tomadas, em razão de serem frutos da vontade devidamente manifestada pelas partes. No caso, deveria deixar de ser o ente interventor e passar a ser o ente que tutela e zela pelas relações e pelos eventuais reflexos decorrentes destas.

Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald[3] entendem que:

Forçoso reconhecer, portanto, a suplantação definitiva da (indevida e excessiva) participação estatal nas relações familiares, deixando de ingerir sobre aspectos personalíssimos da vida privada, que, seguramente, dizem respeito somente à vontade e à liberdade da autodeterminação do próprio titular, como expressão mais pura de sua dignidade. O Estado vai se retirando de um espaço que sempre foi lhe estranho, afastando-se de uma ambientação que não lhe diz respeito (esperando-se, inclusive, que venha, em futuro próximo, a cuidar, com mais vigor e competência das atividades que, realmente, precisam de sua direta e efetiva atuação).                                               Nas relações familiares, a regra é autonomia privada, com a liberdade da atuação do titular. A intervenção estatal somente será justificável quando for necessário para garantir os direitos (em especial, os direitos fundamentais reconhecidos em sede constitucional) de cada titular, que estejam periclitando.

           Logo, o Estado atuaria em defesa, por exemplo, do princípio da dignidade da pessoa humana e da afetividade ao reconhecer a filiação socioafetiva e a multiparentalidade, mas não teria qualquer ingerência sobre a forma com que estas novas relações se estruturariam e se desenvolveriam na esfera privada. Posto que se tratando de relações interpessoais, as partes envolvidas são aquelas que conseguem ter melhor noção dos seus interesses e daquilo que lhes é melhor e mais benefício.       

           De acordo com Leonardo Barreto Moreira Alves[4]:

O reconhecimento do afeto implica necessariamente em autorização do exercício da autonomia privada. Assim, se o afeto é o elemento estruturante da família hodierna, somente pode-se reconhecer a existência desta entidade quando tal elemento estiver presente, daí por que não é incoerente falar em liberdade de formação (se presente o afeto) e liberdade de extinção (se ausente o afeto) da família.

           Assim, com o reconhecimento da capacidade de auto administração dos indivíduos e da consequente limitação do poder estatal, a autonomia e a vontade das partes passaria a ser respeitada e não sofreria intervenção, visto que o Estado não poderia ditar, tampouco gerenciar o que se passa no campo privado. Tal determinação, inclusive, além de estar disciplinada no artigo 1.513 do Código Civil[5] e no artigo 226, §7º da Constituição Federal[6], pode ser verificada nas garantias outorgadas a todas as formas de constituição familiar, a mutuabilidade do regime de bens no casamento, a atuação restrita e limitada do Ministério Publico, bem como a extinção do debate de culpa, quando do término de um matrimônio.

           No entanto, a delimitação entre a atuação pública e privada, em algumas oportunidades, acaba por não suceder, de maneira que o Estado, como ente soberano, ainda disciplina a forma como as relações interpessoais deverão ser estabelecidas e os efeitos que as suas nuances terão. Exemplo disso é a disposição legal do inciso II, do artigo 1641, do Código Civil que tornou obrigatório o regime de separação de bens no casamento de pessoa maior de setenta anos e vedou, por derradeiro, a livre escolha do regime patrimonial que regerá a vida conjugal dos contraentes; demonstrando, assim, a nítida retirada da liberdade individual de contratar o regime que melhor lhe sirva.

           Arnaldo Rizzardo[7], cita como principal característica do direito de família “a finalidade de tutelar”, protegendo aqueles bens que lhe são próprios, como “a prole outros interesses afins”, sendo a função do Estado.                        

           Contudo admite Rizzardo, citando Carlos Alberto Bittar[8] que:

Neste mesmo sentido, o texto constitucional impõe ao Estado, ao lado da concessão de proteção especial à família (art. 226), a assistência às pessoas que dela participam, mediante a instituição de mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações (§ 8º, do art. 226). Estabelece, outrossim, como de livre decisão do casal o planejamento familiar, cabendo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o seu exercício          

Conforme visto, há a necessidade de controle da atuação particular para que o bem estar, a segurança e o bom funcionamento da sociedade como um todo sejam resguardados, mas também é imprescindível que exista um limite da tutela do Estado quando este interfere nas relações privadas, eis que a liberdade conferida aos indivíduos, denominada autonomia, busca exatamente uma certa autodeterminação.

Luiz Felipe Brasil Santos[9] em seu artigo intitulado “A autonomia de vontade no direito de família contemporâneo”, diz o seguinte:

A partir da segunda metade do século XX, no entanto, diante da conscientização de que, de regra, há uma inegável desigualdade de fato (no âmbito econômico, político, social e jurídico) entre os partícipes do contrato, tem-se notado uma crescente intervenção do Estado nas relações jurídicas privadas, com a finalidade de evitar excessos decorrentes do exacerbado liberalismo até então imperante.

              Mais uma vez, o que se indaga é até onde o Estado pode interferir, em especial no direito amoroso dos indivíduos, como no caso do regime da separação obrigatória de bens, para maiores de 70 (setenta) anos, ou até mesmo quando o Estado declara uma relação de união estável com um regime de comunhão parcial de bens, quando nem mesmo os participantes desta relação assim o queriam.

           O Estado, com o passar do tempo, passou a defender a possibilidade dos indivíduos se auto gerenciarem, principalmente no que diz respeito ao campo interpessoal, mas, ao mesmo tempo, permanece atuando e determinando os efeitos e os reflexos que essas relações terão na seara jurídica.

Podemos verificar tal variabilidade de conduta no casamento, por exemplo. O casamento é uns dos institutos do direito de família onde mais se vislumbra o princípio da autonomia privada, já que se trata de um contrato gerador de grades efeitos, tanto na esfera patrimonial, quanto na pessoal, podendo as partes eleger o regime de bens que melhor lhes aprouver, segundo sua vontade.

Contudo, ainda que se refira a um instituto única e exclusivamente pessoal, sofre com a constante intervenção estatal, já que existem determinadas situações em que o Estado não permite que os indivíduos elegem o melhor regime de bens que lhes parece favorável, sendo, v.g., conforme já referido, a imposição da separação obrigatória de bens para os maiores de 70 (setenta) anos, previsto no artigo 1.641, do Código Civil.

Tal imposição, no entanto, ainda que excepcione a regra da livre contratação do regime de bens e gere uma presunção de o casamento para os indivíduos após os 70 (setenta) anos estaria atrelado a certos interesses financeiros, desde o Código Civil de 1916 (há época a imposição se dava aos 60 anos), é muito questionada, justamente, por limitar a autonomia de vontade da pessoa plenamente capaz para todos os atos da vida civil.

Acredita-se que, pretendeu o legislador, excepcionando a regra geral da livre contratação do regime de bens (art. 1.639, CC/02), proteger o idoso, partindo da premissa de que o casamento nessa idade estaria sempre atrelado a interesses econômico- financeiros.                          

Todavia, tal regra fere o direito do indivíduo de tutelar seus direitos e de dispor livremente sobre seus bens. Caio Mário da Silva Pereira[10], defende que o interesse do Estado não pode se sobrepor ao interesse do indivíduo no seio familiar, ou seja, o estado no afã de proteger, não deve sobrepor os interesses coletivos acima dos interesses privados constitucionais dos indivíduos no âmbito familiar.                                                                                     

Alguns doutrinadores defendem que a imposição do regime da  separação  obrigatória  para  pessoas  em  idade avançada trata-se de norma inconstitucional, justamente por impossibilitar o livre exercício da autonomia da vontade de um indivíduo apto e capaz para a prática dos atos da vida civil. Não é porque a parte envolvida se encontra com uma certa idade que não possui legitimidade para dispor do patrimônio da forma como melhor entender, bem como assegurar a esposa ou companheira quando da dissolução do vínculo afetivo ou da ocorrência de sua morte.

Além disso, estes mesmos doutrinadores referem que o regime estipulado em lei seria inócuo, ante a existência da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal[11]. No caso, como a norma estipula que, quando do rompimento matrimonial, os bens adquiridos onerosamente na constância da união serão partilhados, não haveria a incidência dos efeitos da separação obrigatória prevista no artigo 1.641 do Código Civil[12].

Desta maneira, o entendimento é que, embora o regime imposto no momento da constituição da união seja um, quando o liame for rompido, os reflexos aplicados serão outros, sendo, nesse momento, equiparados os da comunhão parcial de bens. O mesmo Estado que obriga a parte a casar de uma forma, determina que, no momento da separação, o regime utilizado será outro.

Assim, não seria muito mais fácil o Estado abster-se de qualquer forma de manifestação ou imposição e deixar as partes convencionarem da forma como melhor entenderem?! Até porque, ainda que a parte administre e aufira patrimônio ao longo da união, sem qualquer participação do cônjuge por um determinação legal, pela mesma norma deverá, ao término do relacionamento, compartilhar com o parceiro tudo aquilo que foi amealhado.

Se o objetivo do doutrinador era proteger o direito de uma das partes em virtude da possibilidade da ocorrência de um casamento com finalidade meramente patrimonial, com as transformações sociais que foram sucedendo, não haveria porque tal tutela permanecer sendo outorgada. As relações familiares encontram-se permeadas de afeto e os sujeitos de direito não podem ter a sua vontade ceifada ou reprimida pela mera imposição estatal acerca de questões privadas.

           Outrossim, a mesma norma que estipula um regime no momento da constituição da união e outra quando da dissolução, ainda não está perfeitamente delimitada, eis que há uma clara controvérsia a respeito da necessidade de prova da existência de esforço comum para a divisão dos bens, conforme atestam as decisões jurisprudenciais, extraídas do Egrégio Superior Tribunal de Justiça e Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que abaixo seguem:

 

Direito Civil. Família. Alimentos. União Estável entre sexagenários. Regime de bens aplicável. Distinção entre frutos e produto. (...) 5. Embora tenha prevalecido no âmbito do STJ o entendimento de que o regime aplicável  na  união  estável  entre  sexagenários  é  o  da  separação  obrigatória  de  bens,  segue  esse  regime temperado pela Súmula 377 do STF, com a comunicação dos bens adquiridos onerosamente na constância da  união,  sendo  presumido  o  esforço  comum,  o  que  equivale  à  aplicação  do  regime  da  comunhão parcial.(...) 8. Recurso especial de G. T. N. não provido. 9. Recurso especial de M. DE L. P. S. provido”. STJ, RESP 1199790/MG, 3ª T., Rel. Min. Vasco dela Giustina, julgado em 14.12.2010, DJe 02.02.2011.Recurso especial - Ação  anulatória  de  aval - Outorga  conjugal  para cônjuges casados  sob  o  regime  da separação obrigatória  de bens - necessidade - Recurso  provido.  1.  É  necessária  a  vênia  conjugal  para  a  prestação  de aval por pessoa casada sob o regime da separação obrigatória de bens, à luz do artigo 1647, III, do Código Civil.  2.  A  exigência  de  outorga  uxória  ou  marital  para  os  negócios  jurídicos  de  (presumidamente)  maior expressão econômica previstos no artigo 1647 do Código Civil (como a prestação de aval ou a alienação de imóveis) decorre da necessidade de garantir a ambos os cônjuges meio de controle da gestão patrimonial, tendo  em  vista  que,  em  eventual  dissolução  do  vínculo  matrimonial,  os  consortes  terão  interesse  na partilha  dos bens adquiridos  onerosamente  na  constância  do  casamento. 3.  Nas  hipóteses  de  casamento sob o regime da separação legal, os consortes, por força da Súmula n. 377/STF, possuem o interesse pelos bens adquiridos onerosamente ao longo do casamento, razão por que é de rigor garantir - lhes o mecanismo de  controle  de  outorga  uxória/marital  para  os  negócios  jurídicos  previstos  no  artigo  1647  da  lei  civil.  4. Recurso especial provido. STJ, REsp 1163074/PB, 3ª T., Rel. Massami Uyeda, julgado em 15.12.2009, DJe 04.02.2010.

 

Apelação Cível. União Estável. Varão Sexagenário ao  tempo  do  início  do  relacionamento.  Separação Obrigatória de bens. Aplicação da súmula nº 377 do STF. Interpretação restritiva desse enunciado. Partilha mediante prova de contribuição dos bens havidos na vigência da união estável. 1. Não há vício material na norma do inciso II do art. 1.641 do CCB, uma vez que a própria Constituição Federal - e, destacadamente, a Lei  nº  10.741/03 - estabelece  necessidade  de  proteção  especial  e  diferenciada  às  pessoas  com  idade  igual ou superior a 60 anos - em consonância com o intuito da regra do Código Civil (na redação anterior à atual, que torna obrigatório o regime de separação de bens somente a partir dos 70 anos). 2. Aplica -se às uniões estáveis a regra de separação obrigatória/legal de bens, sob pena de tratamento privilegiado dessa entidade familiar.  Precedente  do  STJ.  3.  Incidente,  também,  por  decorrência,  a  Súmula  nº  377  do  STF,  em  sua interpretação  restritiva,  que  exige  prova  de  contribuição,  aos  moldes  de  uma  sociedade  de  fato.  Entender em sentido diverso significa descaracterizar o próprio regime de separação de bens, porquanto, ao fim e ao cabo, a presunção de contribuição seria uma forma de burlar a regra, transformando esse regime em uma verdadeira   comunhão   parcial.   4.   Não   há   nos   autos   mínima   comprovação   de   que a   autora   tenha efetivamente  contribuído  na  aquisição  dos  bens  que  pretende  partilhar,  o  que  leva  à  improcedência  do pleito. Por maioria, negaram provimento”. TJRS, Apelação Cível nº 70043554161, 8ª  CC, Rel.  Des.  Luiz Felipe Brasil Santos, julgado em 04.08.2011.

 

Logo, é claro, que além de estarmos diante de uma norma absolutamente ambígua, posto que os efeitos decorrentes da sua aplicação não estão exatamente delimitados, a mesma fere o princípio da autonomia da vontade privada e da mínima intervenção estatal, já que condiciona e limita o desejo do indivíduo ao um mandamento do Estado.

Portanto, diante de tais fatos, o que aqui se defende é que a interferência estatal não deveria ultrapassar os limites da promoção da dignidade da pessoa humana, citando, nesse contexto, Renata Vilela Multedo[13] :

A privacidade passa a ser vista, então, não mais como o direito de estar só, mas principalmente, como o direito de autodetrmina-se e de traçar os rumos da própria existência, de manter o controle sobre as próprias informações. Em consequência, o próprio princípio da liberdade pessoal passa a se consubstanciar em uma perspectiva de privacidade, de intimidade, de modo a garantir o exercício das próprias escolhas individuais.

           Acontece que o Ente Federado, além de continuar agindo de modo a interferir, efetivamente, nas questões do direito de família, encontra respaldo e amparo legal para tanto, visto que a legislação prevê a licitude dessa intervenção e a determina, visando garantir a efetividade dos direitos e deveres.

           A questão até aqui debatida é qual o limite da razoabilidade dessa interferência, uma vez que, conforme já referido, através da CF/88 a família passou a ter um viés muito mais afetivo do que propriamente patrimonial. 

Ou seja, o objetivo anterior a CF/88, de reprodução e constituição patrimonial, agora passa a ter como base a solidariedade, que conforme explica Paulo Lôbo[14], comentando justamente sobre essa modificação das bases familiares assim expressa:

O consenso, a solidariedade, o respeito à dignidade das pessoas  que  a  integram  são os  fundamentos  dessa  imensa  mudança  paradigmática  que  inspiram  o  marco regulatório estampado nos artigos 226 a 230 da Constituição de 1988.

O que se percebe é que no âmbito familiar, o Estado tem um dever de proporcionar um ambiente equilibrado, harmonioso e principalmente saudável, inerentes a interação familiar.

Dão respaldo a isto Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald[15]  ao afirmarem:

Assim, o afeto caracteriza a entidade familiar como uma verdadeira rede de solidariedade, construída para   o   desenvolvimento da   pessoa, não   se permitindo que uma delas  possa  violar  a  natural  confiança  depositada por outra,  consistente  em  ver  efetivada  a  dignidade  humana,  constitucionalmente assegurada.

           Deste modo, o que se denota é que o Estado demonstra uma clara tendência a presunção de que as pessoas não têm o poder de eleger suas escolhas livremente, ainda que plenamente capazes, entendendo que em determinadas situações não merecem autonomia, já que trariam prejuízos aos quais os cidadãos não deveriam ser expostos.

Em uma sociedade democrática, o direito está sempre presente, sendo corolário lógico que o Estado deverá sempre primar pelos conceitos da liberdade, da igualdade e no caso do presente estudo da família, abandonando uma concepção hermética, para transformar o direito dos indivíduos um lugar de desenvolvimento da pessoa.

Renata Vilela Multedo[16], ao citar Maria Celina Bodin de Moraes, esclarece:

Ao direito de liberdade será sempre contraposto o dever de solidariedade social. Se os direitos só podem ser exercidos em contextos sociais, nos quais se dão as relações entre pessoas, o exercício dos próprios direitos deve sempre ser temperado pelo exercício do princípio constitucional da solidariedade, que se identifica com o conjunto de instrumentos voltados para garantir uma existência digna, comum a todos, numa sociedade que se desenvolva como livre e justa, sem excluídos ou marginalizados

           Assim sendo, é evidente que, ainda que o Estado seja imprescindível para a manutenção da ordem, a sua atuação, principalmente no que diz respeito a esfera do Direito de Família deve ser limitada e objetivar resguardar apenas as garantias constitucionais fundamentais do indivíduo, tendo em vista o risco que a tutela demasiada e irrestrita pode ocasionar a plena autonomia de vontade das partes.

 

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

           O Estado sempre desempenhou papel de suma importância perante a sociedade, determinando e moldando a forma com que esta e as relações ali firmadas se desenvolveriam. Por um longo período foi reconhecido como um ente hierárquico supremo, onde todas as decisões emanadas sofreriam com a sua chancela e consequente intervenção.

           No entanto, com a ocorrência de determinadas transformações sociais, principalmente aqueles referentes a forma de constituição familiar, o papel estatal foi ressignificado. Isto porque, como a família passou a ser permeada pelo afeto, as atitudes ali tomadas deveriam ser respeitadas, em razão de serem a mais pura e verdadeira manifestação de vontade do indivíduo.

           Dessa forma, o Estado, até então máximo e soberano, passou a ter o seu poder de atuação restrito e limitado, de modo que o princípio do Direito Mínimo passou a vigorar nas relações interpessoais e enaltecer, por consequência, o preceito da autonomia privada dos sujeitos de direito.

           Acontece que, pelo ordenamento jurídico legitimar a atuação do Estado, tanto na esfera pública, quanto na privada, a sua atuação, por muitas vezes, acaba se dando de modo demasiado e excessivo, com a justificativa de tutelar pelas garantias mínimas constitucionais. Tal intervenção pode ser verificada, por exemplo, na imposição do regime da separação obrigatória de bens quando um dos contraentes possuir mais de 70 (setenta) anos.

           Assim, percebe-se que, embora já tenhamos tido avanços significativos no tocante da intervenção do Estado nas relações privadas, muito ainda se faz necessário debater, a fim de que o mesmo cumpra efetivamente com o seu papel, ou seja, possibilite que o indivíduo se autodetermine e respeite, por consequência, as decisões por ele tomadas.

 

4 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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[1] CARVALHO, Dimas Messias de. Intervenção do Ministério Público no Direito de Família: Entre  o Público e o Privado. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Família entre o Público e o Privado, Porto Alegre: Magister/IBDFAM, 2012, p. 79.

[2] ALVES, Leandro Barreto Moreira. Direito de Família Mínimo: A Possibilidade da Aplicação e o Campo de Incidência da Autonomia Privada no Direito de Família, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010, p. 3.

[3] FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Famílias, Salvador: Ed. JusPodivm, 2016, p. 48.

[4] ALVES, Leandro Barreto Moreira. Direito de Família Mínimo: A Possibilidade da Aplicação e o Campo de Incidência da Autonomia Privada no Direito de Família, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010, p. 138.

[5] Art. 1513 - É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família.

[6] Art. 226 - A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

[7] RIZZARDO, Arnaldo, Direito de Família 8 ed., Rio de Janeiro: Editora Forense, 2011, p. 4.

[8] RIZZARDO apud BITTAR, Carlos Alberto, in O direito Civil na Constituição de 1988, São Paulo, RT, 1990, p. 64.

[9] SANTOS, Luiz Felipe Brasil, in A Autonomia de vontade no direito de família contemporâneo. Família e seus desafios, 2ª ed., Coord. Delma Silveira Ibias, Porto Alegre, IBDFAM, 2013, p. 10.

[10] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil - volume 5. Atual. Maria Celina Bodin de Moraes. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008

[11] Súmula 377 do STF - No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.

[12] Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:                                             I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;                                                                                                                                                               II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos;                                                                                                      III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.

[13] MULTEDO, Renata Vilela, Liberdade e família – Limites para a intervenção do Estado nas relações conjugais e parentais, Rio de Janeiro, Ed, Processo, 2017, p. 2-3

[14] LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. São Paulo: Saraiva: 2008, p. 5.

[15] FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD,  Nelson. Direito  das  Famílias .  Rio  de  Janeiro:  Lumen  Juris, 2008, p. 72

[16] MULTEDO, Renata Vilela, apud MORAES, Maria Celina Bodin de, Liberdade e Família – Limites para a intervenção do Estado nas relações conjugais e parentais. Ed. Processo. Rio de Janeiro, 2017, p. 23

Eduarda Schilling Lanfredi

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